Recentemente, um profissional da saúde, juntamente com a instituição médica, foram processados por uma paciente transgênero, sob a alegação de não ter sido atendida em razão da sua condição de gênero.
Devido a um processo de mudança de nome e uma cirurgia para adequação social, a paciente adotou um nome social.
Em virtude de realizar a utilização de medicamentos hormonais sem prescrição médica, a paciente trangênero procurou a instituição para realização de exames para verificação de seu estado de saúde, como exames de sangue e mamografia.
No processo, foi alegado que a médica a atendeu, visivelmente incomodada com a situação, e após a análise dos documentos apresentados, alegou que o atendimento teria que ser feito em outra cidade.
No processo, a paciente afirma que questionou a negativa de atendimento, mas não obteve resposta.
Alegou ainda ter sido expulsa do consultório.
Confira decisão completa com o caso – clique aqui
Resultado da situação: uma denúncia do profissional e da instituição na delegacia de polícia, um processo no Juizado Especial Criminal, uma denúncia na Comissão de Direitos LGBT da OAB, outra à Defensoria Pública e uma ação de indenização por danos morais que chegou até o Tribunal de Justiça de São Paulo.
O TJ-SP, na decisão, não reconheceu o abalo moral que justificasse a indenização.
Mas, pense toda a dor de cabeça dessa profissional, enfrentando um abalo de imagem pessoal e correndo sérios riscos com uma ação criminal e uma de indenização.
O caso é relativamente recente (maio de 2019), mas isso é comum e ainda acontece muito, em pleno 2020.
Isso nos leva a alguns questionamentos.
Será que o profissional da saúde deve se preocupar com o atendimento a pessoas transgêneras ou com incongruência de gênero?
Quais os cuidados que à pessoa com incongruência de gênero ou transgênero deve receber, em relação às ações e condutas realizadas por profissionais médicos nos serviços de saúde?
Pode, em alguma hipótese, o profissional ser responsabilizado por alguma situação ocorrida nesses atendimentos?
Aliás, doutores e doutoras, vocês sabem o que significa uma pessoa transgênera ou com incongruência de gênero?
Responderemos essas indagações no decorrer do artigo.
Usando a terminologia correta como forma de respeito e acolhimento do paciente trangênero
Gosto sempre de frisar aos meus clientes: um atendimento de qualidade e respeitoso é o primeiro passo para a diminuição das demandas judiciais contra os médicos.
O médico deve entender o paciente como uma pessoa que possui problemas alheios às enfermidades.
Ele é muito mais do que uma doença ou sintoma: é uma pessoa, um ser humano com dores e individualidades.
Por esse motivo, para um bom atendimento, o profissional da saúde deve compreender as terminologias “transgênero” e pessoas com incongruência de gênero.
O CFM define essas terminologias da seguinte forma:
Compreende-se por transgênero ou incongruência de gênero a não paridade entre a identidade de gênero e o sexo ao nascimento, incluindo- se neste grupo transexuais, travestis e outras expressões identitárias relacionadas à diversidade de gênero.
Mas por qual motivo isso é importante?
Toda lei é acompanhada por exposição de motivos, ou seja, é relatada a preocupação que a lei busca amparar, o problema que busca corrigir.
É inegável que existe, em nossa sociedade, escancarado preconceito para com a população LGBT.
Sendo assim, as leis, principalmente no decorrer da última década, procuram suprir essas mazelas.
É interessante mencionar que em uma dessas leis, em sua exposição de motivos, trata do adoecimento decorrente do preconceito e do estigma social, direcionado às populações lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais.
Ou seja, já está comprovado o sofrimento psicológico causado por esse estigma social.
Daí, imagine que uma pessoa procure ajuda do médico, que é o profissional que representa cuidado e acolhimento no imaginário das pessoas, e sofra preconceito do próprio agente de saúde?
O que, para o profissional de saúde, não soa de forma preconceituosa, para aquele que convive diariamente com o preconceito, gera dor e sofrimento.
Agora imagine o contrário.
No primeiro contato da pessoa transgênera ou com incongruência de gênero, o profissional da saúde acolhe o paciente, usando a terminologia correta?
No primeiro contato com o paciente, já não há a agressão verbal.
A relação profissional da saúde x paciente já começa sólida.
Neste processo de atendimento, é fundamental que o conceito de saúde esteja claro.
A OMS define saúde como:
“um estado de completo bem-estar físico, mental e social e não somente ausência de afecções e enfermidades”.
Mas por qual motivo essa conceituação é importante?
Multidisciplinariedade!!!
O ministério da saúde, levando em consideração que a Constituição do nosso país protege a saúde de forma igualitária e livre de preconceitos, editou diversas portarias.
Esses documentos instituem, ampliam, qualificam, monitoram, garantem e promovem o atendimento em Saúde da população LGBT no SUS.
Exemplificando, podemos mencionar:
- A pessoa terá direito a inúmeros serviços como: psiquiatria, endocrinologia, enfermagem, psicólogo, assistência social, entre outros atendimentos.
- A cirurgia de transgenitalização e a readequação sexual no Processo Transexualizador, tratando como um atendimento interdisciplinar e multiprofissional.
- A elaboração protocolo clínico para atendimento das demandas por mastectomia e histerectomia em transexuais masculinos, como procedimentos a serem oferecidos nos serviços do SUS.
- A elaboração de protocolos clínicos acerca do uso de hormônios, implante de próteses de silicone para travestis e transexuais;
Como isso influencia o dia a dia do médico?
Percebemos por esses breves exemplos, que a atividade médica precisa se adequar às constantes mudanças.
Em virtude da insegurança jurídica dessas mudanças, o Conselho Federal de Medicina começou a receber inúmeras consultas de profissionais com dúvidas na execução dos procedimentos.
Sendo assim, o CFM editou pareceres e resoluções, sendo a mais recente nesse ano de 2020. Essa resolução estabelece determinado projeto terapêutico que deve ser seguido.
Contemplando o acolhimento, o acompanhamento ambulatorial, a hormonioterapia e o cuidado cirúrgico.
Ou seja, o processo, como um todo, deve possuir o acompanhamento mínimo formado por pediatra (em caso de pacientes com até 18 (dezoito) anos de idade), psiquiatra, endocrinologista, ginecologista, urologista e cirurgião plástico, além de outras especialidades médicas decididas no Projeto Terapêutico Singular.
Perceberam que as legislações e o CFM tentam, ao máximo, cumprir com o conceito de saúde da OMS?
Com um bom atendimento os problemas jurídicos estão superados?
NÃO!!!
Devemos agora explorar os riscos jurídicos do projeto terapêutico singular.
Visualizamos que o maior risco jurídico aos profissionais da medicina, envolvidos no processo terapêutico singular, se encontra no atendimento a pacientes menores.
– Endocrinologista
O endocrinologista não pode, legalmente, realizar hormonioterapia cruzada antes dos 16 (dezesseis) anos de idade.
Crianças ou adolescentes transgênicos, fase pré-púbere, devem ser acompanhados pela equipe multiprofissional e interdisciplinar sem nenhuma intervenção hormonal ou cirúrgica.
Já na puberdade o bloqueio hormonal poderá ser realizado exclusivamente em caráter experimental em protocolos de pesquisa, respeitando ainda as normas do CEP/Conep, devendo serem realizados nos hospitais universitários e/ou de referência para o SUS.
Existe uma exceção a essa legislação quando se tratar de puberdade precoce, mas não é o escopo deste artigo. Mas se trata do atendimento a pacientes portadores de puberdade precoce ou estágio puberal Tanner II antes dos 8 anos no sexo feminino (cariótipo 46,XX) e antes dos 9 anos no sexo masculino (cariótipo 46,XY) que necessitem de tratamento com hormonioterapia cruzada por se tratar de doenças.
Sendo assim, o endocrinologista que descumprir esses preceitos poderá sofrer sanções administrativas, cíveis e penais.
– Cirurgião
Procedimentos cirúrgicos de afirmação de gênero antes dos 18 (dezoito) anos de idade são proibidos!
Mesmo em procedimentos envolvendo maiores, o ato cirúrgico só poderá acontecer após acompanhamento multiprofissional e interdisciplinar de 1 (um) ano.
Nessa etapa a função psiquiatra é de fundamental e indispensável incidência.
Antes da realização do procedimento cirúrgico, deve o cirurgião garantir que a hormonioterapia foi realizada sob supervisão de um endocrinologista, ginecológica ou urológica, devendo ser avaliado se as transformações corporais atingiram o estágio adequado.
Cuidado!
O cirurgião deve se atentar que os procedimentos cirúrgicos no processo de trangenitalização podem ser caracterizados como estéticos, contraindo assim a obrigação de resultado.
Caso queira entender melhor a obrigação de resultado nos procedimentos estéticos, sugiro a leitura do artigo que tratamos do assunto: Esse artigo adverte: fumar pode causar improcedência do pedido.
Confira essa decisão judicial, que trata de uma Mastectomia Subcutânea Bilateral em uma pessoa transgênera:
Ação de indenização por danos materiais, morais e estéticos – Sentença de procedência – Insurgência do requerido – Erro médico – Responsabilidade do médico cirurgião para fins estéticos – Obrigação de resultado – Cirurgia teve resultado inestético – Prova que não foi capaz de demonstrar a inexistência de erro médico – Nexo causal entre a realização da cirurgia e o resultado inestético atestado pelo laudo médico – Danos morais configurados pela gravidade do dissabor experimentado pela autora – Indenização corretamente arbitrada no importe de R$ 8.000,00 – Dano estético caracterizado – Indenização corretamente arbitrada no importe de R$ 8.000,00 – Juros moratórios incidentes desde a data do evento danoso – Dano material comprovado – Indenização corretamente arbitrada no importe de R$ 8.000,00 – Sentença mantida, com observação – Recurso não provido, com observação. Nega-se provimento ao recurso, com observação.
(TJSP; Apelação Cível 1040707-83.2016.8.26.0114; Relator (a): Marcia Dalla Déa Barone; Órgão Julgador: 2ª Câmara de Direito Privado; Foro de Campinas – 3ª Vara Cível; Data do Julgamento: 26/02/2019; Data de Registro: 26/02/2019).
De forma breve, essa decisão trata de determinado paciente que foi submetido ao procedimento cirúrgico de Mastectomia Subcutânea Bilateral e ficou insatisfeito com o resultado estético da cirurgia.
-Psiquiatra:
O acompanhamento especializado é peça fundamental no processo terapêutico singular.
São proibidos procedimentos cirúrgicos ou hormonais em pessoas com diagnóstico de transtornos psicóticos graves, transtornos de personalidade graves, retardo mental e transtornos globais do desenvolvimento graves.
A presença dos pais e responsáveis são obrigatórios no acompanhamento psiquiátrico em crianças, sempre dentro dos limites éticos gerais.
Sendo assim, o profissional deve utilizar de extrema perícia ao formular diagnóstico, identificar morbidades, realizar diagnósticos diferenciais, prescrever medicamentos e indicar e executar psicoterapia, se necessário.
Entendo que essa avaliação interdisciplinar e multiprofissional prévia é a chave para o sucesso do procedimento como um todo.
Qualquer equívoco nesse atendimento poderá gerar erros em cadeia no decorrer do processo.
Suponhamos que o psiquiatra, após o lapso exigido pela legislação de 1 (um) ano, não faz o devido diagnóstico de uma das enfermidades descritas acima e, consequentemente, avaliza o processo de hormonioterapia cruzada.
Sendo assim o endocrinologista promove o tratamento, indicando o próximo passo cirúrgico e, ato conseguinte, o procedimento invasivo é realizado.
Após determinado período o paciente do projeto terapêutico é diagnosticado com transtornos de personalidade graves, tendo sido caracterizada a data de início da doença antes de todo procedimento.
Certamente todo o projeto singular poderá ser discutido com suas possíveis responsabilizações.
Não se esqueça do termo de consentimento informado específico para os casos de transgenia

Concluímos com a principal dica no meio jurídico médico, que se repete e se repetirá em todos artigos que possuírem os cuidados legais do profissional da saúde.
O TERMO DE CONSENTIMENTO INFORMADO ESPECÍFICO.
Doutores, a informação correta, precisa e específica pode ser a balança entre a procedência e a improcedência em qualquer litígio que envolva a responsabilização médica.
Vale ressaltar que, nesse processo é obrigatório obter o consentimento livre e esclarecido, informando ao paciente transgênero sobre a possibilidade de esterilidade dos procedimentos hormonais e cirúrgicos.
Lembrando que os familiares do paciente só poderão ter acesso ao tratamento médico mediante autorização expressa do transgênero.
Sendo assim, além de um Termo geral para o projeto terapêutico singular, cada profissional, no seu atendimento especializado, deve promover a informação correta, precisa e ampla sobre sua atuação em particular.
Médico cuida do paciente, mas quem cuida dele?
Lembrando que em artigos anteriores já demonstramos que a mera ausência de informação adequada já é passível de responsabilização.
O acompanhamento jurídico no dia a dia médico é de fundamental importância, vários procedimentos jurídicos devem ser adotados no dia-a-dia das ciências médicas, instituições clínicas e hospitais.
Participando de um congresso promovido pela Associação Brasileira de cirurgia plástica, ouvi de um palestrante, que infelizmente não me recordo o nome, uma frase bastante impactante:
¨O médico precisa se preocupar em ser médico¨
Ou seja, a questão legal da medicina é de fundamental importância, mas os profissionais da saúde não podem gastar seu valioso tempo com leis.
Despender tempo para o estudo dessas legislações é de grande prejuízo para a já sobrecarregada atividade médica.