Desconto compulsório na folha de servidor aposentado: pode ou não pode?

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O Poder Público pode fazer desconto compulsório na folha de servidor aposentado que recebia proventos superiores ao realmente devido?

Muitos servidores públicos, quando se aposentam, sofrem uma queda em seus rendimentos.

E isso pode ocorrer por vários motivos.

Pode ser pelo tipo de aposentadoria escolhido, ou pelo valor e tempo que o aposentado contribuiu, pelas regras específicas do regime jurídico aplicado ao servidor, dentre outros.

Mas, é possível que, ao definir o valor da aposentadoria do servidor, o órgão responsável pelos cálculos dos proventos acabe se equivocando, e gerando uma situação aparentemente favorável ao servidor.

O equívoco consiste no cálculo com valor superior ao devido, a favor do servidor público.

Com isso, o servidor se aposenta e passa a receber um salário aposentadoria superior àquele que ele teria direito.

Eu disse que a situação é aparentemente vantajosa, porque, na prática, ela pode se tornar uma dor de cabeça para o aposentado.

Neste artigo, vamos entender a situação, e descobrir se a Administração Pública pode fazer desconto compulsório na folha de servidor aposentado que recebia proventos superiores ao realmente devido?

O pente-fino do Governo e a revisão das aposentadorias

O problema é que, com a crise fiscal que assola praticamente todos os entes da federação, muitos órgãos estão fazendo uma espécie de pente-fino nas aposentadorias.

Esse pente fino consiste em revisar aposentadorias, recalculando os valores devidos.

Nessa revisão, muitos erros, cometidos pela própria Administração Pública, são encontrados.

E o pior de tudo: descobrem isso 2 ou 3 anos após a concessão da aposentadoria.

Daí, eles mandam uma cartinha para o servidor, avisando que será cobrado todo o valor acumulado.

Com isso, fica a pergunta: o servidor aposentado é obrigado a devolver os valores recebidos a mais durante esse período?

E mais: o Poder Público pode fazer descontos compulsórios na folha de pagamento, para ter os valores ressarcidos?

Análise de caso: como é possível ao aposentado se tornar um devedor do Poder Público?

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Para deixar bem clara a situação, vou trazer um exemplo bem exagerado!

Depois, faremos uma análise mais realista da situação.

João da Silva entrou tarde no serviço público.

Passou em um concurso público, para um cargo com salário inicial de R$30.000,00.

Com 10 anos de carreira, já com idade para se aposentar, decidiu pela aposentadoria voluntária.

Feitos os cálculos pelo departamento específico, o valor da aposentadoria de João seria de R$3.000,00, ou seja, 27 mil a menos do que ele recebia.

Porém, por conta de um erro interno, o órgão manteve o pagamento de R$30.000,00 por 5 anos.

Após uma revisão de rotina, foi descoberto que o pagamento de João estava irregular e que ele já tinha recebido R$1.620.000,00 (um milhão e seiscentos e vinte mil reais), durante esse período.

Ocorre que, quando João pediu a sua aposentadoria, ele recebeu uma aposentadoria milionária do seu falecido pai.

O valor de sua aposentadoria (30 mil reais) não fazia diferença nenhuma diante do seu novo patrimônio.

Ele nem se preocupava com o valor que recebia do salário de aposentadoria.

Muito menos, se preocupou em conferir que estava recebendo valores acima do que lhe era devido.

Mas, a Administração Pública, no processo de revisão das aposentadorias, encontrou o erro e enviou um telegrama para João, cobrando o valor de R$1.620.000,00 recebidos a mais por erro de cálculo de aposentadoria.

O telegrama informava, ainda, que não ocorrendo o pagamento espontâneo, o valor começaria a ser debitado diretamente na folha de pagamento.

Afinal: pode ou não pode desconto na folha do aposentado?

É fato que João da Silva recebeu R$1.620.000,00, já que sua aposentadoria deveria ser de R$3.000,00, e não de R$30.000,00.

Também é fato que uma pessoa média (de inteligência mediana) saberia do erro do cálculo.

Afinal, 27 mil reais de diferença é uma grana alta, que faria a diferença na vida de boa parte dos brasileiros.

Mas, no caso do João, ele ganhou uma herança substancial, muito acima do trocado irrisório que se transformou esses 30 mil reais por mês.

Nessa situação, João terá que ressarcir o erário em R$1.620.000,00?

A resposta é NÃO!

E por que, mesmo diante de um valor tão alto, João não terá que devolver nada ao erário?

Por dois motivos:

  • 1º) a verba recebida (proventos de aposentadoria) tem caráter alimentar;
  • 2º) ela foi recebida de boa fé!

Primeiro, devemos considerar que os proventos de aposentadoria tem o caráter alimentar.

Ou seja, assim como qualquer tipo de subsídio ou salário recebido em virtude de uma atividade remunerada, a aposentadoria serve para atender as necessidades de sobrevivência de uma pessoa.

Abarca não apenas a compra de alimentos, mas de todos os itens necessários para ter uma vida digna.

E a “historinha” de que João recebeu uma herança não foi em vão.

Ela prova o segundo requisito, que é a boa fé de João.

No caso, boa fé pode ser entendida como o dever que o servidor tem de agir de forma honesta, não podendo tirar vantagens ilícitas da sua relação com a Administração Pública.

O patrimônio elevado de João, que faz com que o salário de 30 mil seja irrelevante, foi fator crucial para determinar que ele recebeu os R$27.000,00 a mais, durante 5 anos, de boa fé.

Se o salário fosse R$1.000,00 ou R$40.000,00, não faria diferença para João.

Ele estava muito mais preocupado em gastar a fortuna adquirida com a sua herança.

E isso é o fator que determina a sua boa fé.

E uma vez recebida de boa-fé, a verba de caráter alimentar, como dissemos, não deve ser restituída aos cofres da Administração Pública.

Casos mais comuns de descontos compulsórios

No caso do João, exageramos no exemplo para focar na questão da boa-fé.

Na prática, não temos muitos casos como o dele.

Mas, existem muitos casos reais de servidores que estão numa situação semelhante à de João.

A situação ocorre com servidores que possuem salários menores, ou que a diferença do erro de cálculo feito pela a Administração é menor.

Por exemplo, pense num servidor que ganha por volta de R$ 7.000,00 mensais.

Quando ele se aposenta, o salário cai para R$ 5.700,00, uma diferença pequena, que não é percebida como erro pelo servidor.

Ou então, o salário cai para R$ 4.500,00, mas o Poder Público continua pagando os R$ 7.000,00 por 2 ou 3 anos.

Neste último caso, temos um erro que dá uma diferença “a favor” do servidor de R$ 2.500,00 por mês.

E fazendo uma conta de padaria, sem atualizações, 13º, ou qualquer outra variável, vamos imaginar 3 anos de pagamento superior nos moldes exemplificados:

  • Valor recebido a mais: $ 2.500,00
  • Valor que deveria receber: $ 4.500,00
  • Valor que recebeu: $ 7.000,00
  • Diferença recebida a mais por mês: $ 2.500,00
  • Tempo recebido: 36 meses
  • Diferença total recebida: 2.500 x 36 = $ 90.000,00

Veja que, mesmo uma diferença bem menor do que a da aposentadoria do João, que pode até passar despercebida, resulta numa dívida para com a Administração Pública no valor de 90 mil reais.

Se pensarmos que a renda mensal da maioria dos servidores públicos vem exclusivamente dos seus vencimentos, que ela é usada para o sustento próprio e da família, não existe a menor chance de, ganhando R$ 4.500,00 mensais, na terceira idade (que demanda maiores gastos com saúde), assumir uma dívida de R$90.000,00.

Qual o entendimento dos Tribunais sobre o tema?

Entendimento-dos-Tribunais

Os Tribunais têm um entendimento semelhante ao que foi exposto no nosso estudo de caso.

Para o STF e o STJ, a verba de caráter alimentar, desde que recebida de boa-fé, não é devida a restituição aos cofres públicos.

Confira algumas decisões do STF e do STJ sobre o assunto.

“Ementa: AGRAVO REGIMENTAL EM MANDADO DE SEGURANÇA. ACÓRDÃO DO TCU QUE DETERMINOU A IMEDIATA INTERRUPÇÃO DO PAGAMENTO DA URP DE FEVEREIRO DE 1989 (26,05%). EXCLUSÃO DE VANTAGEM ECONÔMICA RECONHECIDA POR DECISÃO JUDICIAL COM TRÂNSITO EM JULGADO. NATUREZA ALIMENTAR E A PERCEPÇÃO DE BOA-FÉ AFASTAM A RESTITUIÇÃO DOS VALORES RECEBIDOS ATÉ A REVOGAÇÃO DA LIMINAR. AGRAVO REGIMENTAL A QUE SE NEGA PROVIMENTO.

(MS 25921 AgR, Relator(a):  Min. LUIZ FUX, Primeira Turma, julgado em 01/12/2015, ACÓRDÃO ELETRÔNICO DJe-060 DIVULG 01-04-2016 PUBLIC 04-04-2016)

Essa jurisprudência é particularmente interessante, não só pela decisão, mas pelo voto do Ministro Fux, que acrescentou:

“No presente caso, fica patente a boa-fé dos associados da impetrante, porquanto a recomposição salarial (URP – 26,05%) foi deferida em decisão judicial que transitou em julgado. Existia, assim, a base da confiança a legitimar a tutela das expectativas legítimas dos associados da impetrante impedindo a obrigatoriedade de restituição. Ademais, ressalto a natureza alimentar da verba recebida”.

Em outro julgado, também tendo o Ministro Fux como relator, a primeira Turma decidiu:

AGRAVO REGIMENTAL EM MANDADO DE SEGURANÇA. ATOS DO TRIBUNAL DE CONTAS DA UNIÃO. DEVOLUÇÃO DE VALORES RECEBIDOS INDEVIDAMENTE POR SERVIDORES PÚBLICOS. VALORES REFERENTES À PARCELA DE 10,87% (IPCR) E RELATIVOS A PAGAMENTO PELO EXERCÍCIO DE FUNÇÕES COMISSIONADAS E CARGOS EM COMISSÃO. A NATUREZA ALIMENTAR E A PERCEPÇÃO DE BOA-FÉ AFASTAM A RESTITUIÇÃO DOS VALORES RECEBIDOS ATÉ A REVOGAÇÃO DA LIMINAR. AGRAVO REGIMENTAL A QUE SE NEGA PROVIMENTO.

  1. Os valores percebidos em razão de decisão administrativa, dispensam a restituição quando auferidas de boa-fé, aliada à ocorrência de errônea interpretação da Lei, ao caráter alimentício das parcelas percebidas e ao pagamento por iniciativa da Administração Pública sem participação dos servidores.
  2. Os valores recebidos com base em decisões judiciais, além de não ostentar caráter alimentar, não são restituíveis na forma da jurisprudência desta Corte. (Precedente AI 410.946-AgR, Min. Rel. Ellen Gracie, DJe 07/5/2010)
  3. In casu, O TCU determinou a devolução de quantias indevidamente recebidas por servidores do TJDFT, relativas ao pagamento de valores referentes ao percentual de 10,87%, em razão de decisões judiciais, bem como ao pagamento do valor integral de função comissionada ou cargo em comissão cumulado com remuneração de cargo efetivo e VPNI, devido à decisão administrativa. 4. Agravo regimental a que se nega provimento.

(MS 31259 AgR, Relator(a):  Min. LUIZ FUX, Primeira Turma, julgado em 24/11/2015, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-248 DIVULG 09-12-2015 PUBLIC 10-12-2015)

Envolvendo o mesmo assunto (recebimento de valores indevidos por servidor de boa-fé), em julgamento tomado no rito do art.545-C do anterior CPC, o Superior Tribunal de Justiça definiu da seguinte forma:

ADMINISTRATIVO. PROCESSUAL CIVIL. AGRAVO REGIMENTAL NO RECURSO ESPECIAL. SERVIDORES PÚBLICOS. PAGAMENTO INDEVIDO POR ERRO DA ADMINISTRAÇÃO. RECEBIMENTO DE BOA-FÉ. VERBA DE CARÁTER ALIMENTAR. DEVOLUÇÃO. NÃO CABIMENTO. AGRAVO NÃO PROVIDO.

  1. Descabe a restituição de valores recebidos de boa-fé pelo servidor em decorrência de errônea interpretação da lei pela Administração Pública. Precedente da Primeira Seção no REsp 1.244.182/PB (julgado pelo rito do art. 543-C do CPC).
  2. A interpretação extensiva da norma infraconstitucional efetuada pelos órgãos fracionários que compõem o Superior Tribunal de Justiça não se confunde com a declaração de inconstitucionalidade, que requer rito próprio, nos termos do art. 97 da Constituição Federal. 3. Agravo regimental não provido. ..EMEN:

(AGRESP 201102293800, ARNALDO ESTEVES LIMA, STJ – PRIMEIRA TURMA, DJE DATA:21/02/2013 ..DTPB:.)”

 

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