Remoção por Motivo de Saúde: A Evolução Jurisprudencial do Critério de Adequação do Tratamento Médico

Entenda a evolução jurisprudencial da remoção de servidor por motivo de saúde e como o critério do tratamento médico adequado tem avançado.

Tratamento médico adequado: mão de uma mulher deitada numa cama de hospital.

A remoção por motivo de saúde, regulamentada pelo artigo 36, inciso III, alínea “b”, da Lei nº 8.112/1990, constitui instrumento jurídico que materializa a proteção constitucional da dignidade humana e do direito fundamental à saúde no âmbito das relações funcionais públicas.

Este instituto permite a mudança de lotação do servidor quando necessária para viabilizar tratamento médico adequado para si próprio ou seus dependentes, representando importante mecanismo de conciliação entre as necessidades da administração pública e os direitos fundamentais dos servidores.

A interpretação e aplicação deste dispositivo legal tem evoluído ao longo dos anos, refletindo mudança paradigmática na compreensão do direito à saúde e na avaliação dos critérios que justificam a remoção.

A jurisprudência contemporânea tem superado entendimentos restritivos que condicionavam a remoção à inexistência absoluta de recursos médicos na localidade de origem, adotando critérios mais sofisticados que consideram a adequação, qualidade e efetividade do tratamento disponível.

Fundamentos Constitucionais e Legais da Remoção por Saúde

O direito à remoção por motivo de saúde encontra fundamento imediato no artigo 36 da Lei nº 8.112/1990, mas sua legitimidade deriva dos princípios constitucionais fundamentais que estruturam o ordenamento jurídico brasileiro.

A Constituição Federal estabelece, em seus artigos 6º e 196, o direito à saúde como direito social fundamental e dever do Estado, criando obrigação positiva de garantir acesso universal e igualitário às ações e serviços de saúde.

A dignidade da pessoa humana, princípio fundamental da República previsto no artigo 1º, inciso III, da Constituição, confere dimensão axiológica adicional ao direito à remoção por saúde. Este princípio impede que o ser humano seja tratado como mero objeto das necessidades administrativas, exigindo que suas necessidades essenciais sejam consideradas na organização dos serviços públicos. A remoção por saúde representa aplicação concreta deste princípio, reconhecendo que a vida e a integridade física precedem as conveniências administrativas.

O princípio da proteção da família, consagrado no artigo 226 da Constituição, também fundamenta a extensão do direito de remoção aos casos de necessidade médica de dependentes. A família é reconhecida como base da sociedade, merecendo proteção especial do Estado. Esta proteção inclui a garantia de condições que permitam aos pais cuidar adequadamente da saúde de seus filhos, justificando a remoção quando necessária para viabilizar tratamento médico de dependentes.

A efetividade destes direitos fundamentais exige interpretação que vai além da mera formalidade legal, alcançando a substância das garantias constitucionais. Não basta que existam formalmente serviços de saúde na localidade; é necessário que estes serviços sejam adequados, acessíveis e eficazes para as necessidades específicas do servidor ou de seus dependentes.

Evolução da Interpretação Jurisprudencial

A interpretação jurisprudencial do artigo 36, III, “b”, da Lei nº 8.112/1990 tem passado por transformação significativa nas últimas décadas, refletindo maior compreensão da complexidade do direito à saúde e de suas implicações práticas.

Inicialmente, predominava entendimento restritivo que condicionava a remoção à demonstração da inexistência absoluta de recursos médicos na localidade de origem. Esta interpretação restritiva baseava-se em lógica binária simplificada: havendo qualquer tipo de atendimento médico na cidade de origem, não se justificaria a remoção.

Tal entendimento desconsiderava aspectos qualitativos do atendimento médico, como especialização, equipamentos disponíveis, experiência dos profissionais e adequação dos tratamentos oferecidos às necessidades específicas dos pacientes.

A superação gradual desta visão restritiva decorreu do reconhecimento de que o direito à saúde não se esgota no mero acesso formal aos serviços médicos, mas abrange o direito ao tratamento adequado e efetivo. A existência de hospital ou médico na localidade não garante automaticamente que o tratamento necessário esteja disponível com a qualidade e especialização exigidas pelo caso concreto.

A jurisprudência contemporânea tem adotado critérios mais sofisticados que consideram a adequação do tratamento disponível às necessidades específicas do paciente. Esta evolução reconhece que diferentes condições médicas exigem níveis distintos de especialização, equipamentos e estruturas hospitalares, não sendo razoável esperar que todas as localidades ofereçam todos os tipos de tratamento com o mesmo nível de qualidade.

Critérios Contemporâneos de Avaliação

Tratamento médico adequado: mãos da médica olhando exame de raio-x no tablet.

A avaliação contemporânea dos pedidos de remoção por motivo de saúde baseia-se em critérios multidimensionais que consideram diversos aspectos da adequação do tratamento médico. O primeiro critério refere-se à especialização necessária para o tratamento da condição específica do servidor ou dependente. Doenças raras, condições complexas ou tratamentos experimentais frequentemente exigem especialização que não está disponível em todas as localidades.

A disponibilidade de equipamentos e tecnologias médicas constitui outro critério relevante. Tratamentos modernos frequentemente dependem de equipamentos sofisticados que não estão presentes em todos os hospitais. A ausência destes recursos na localidade de origem pode justificar a remoção para centro que disponha da tecnologia necessária.

A continuidade do tratamento representa aspecto importante na avaliação dos pedidos. Condições crônicas que exigem acompanhamento prolongado beneficiam-se da estabilidade na relação médico-paciente e da familiaridade com o histórico clínico. A interrupção forçada de tratamento bem estabelecido pode comprometer seus resultados e justificar a manutenção do servidor na localidade onde recebe cuidados adequados.

A multidisciplinaridade do atendimento também tem sido considerada pelos tribunais. Condições como autismo, paralisia cerebral ou doenças degenerativas frequentemente exigem equipe multidisciplinar que inclui médicos de diferentes especialidades, fisioterapeutas, fonoaudiólogos, psicólogos e outros profissionais. A ausência desta estrutura integrada na localidade de origem pode justificar a remoção.

Precedentes Jurisprudenciais Relevantes

A análise de precedentes jurisprudenciais específicos ilustra a aplicação prática dos novos critérios de avaliação dos pedidos de remoção por motivo de saúde, demonstrando como os tribunais têm superado interpretações restritivas em favor de abordagem mais substancial do direito à saúde.

O caso paradigmático envolvendo servidor do Instituto Federal Farroupilha exemplifica perfeitamente a evolução jurisprudencial. O servidor, portador de doença degenerativa grave da coluna vertebral, estava lotado em São Vicente do Sul/RS e requereu remoção para Santa Maria/RS, onde funcionava hospital universitário com tratamento especializado para sua condição. A 3ª Vara Federal de Santa Maria, em decisão publicada em 08/01/2024, deferiu o pedido após identificar contradição evidente na perícia oficial.

Embora a perícia inicial tenha concluído que o tratamento poderia prosseguir na cidade de origem, o próprio laudo reconhecia que o tratamento necessário era altamente especializado e “somente está disponível em cidades de maior porte”, demandando acompanhamento prolongado. A magistrada considerou tal conclusão contraditória: se o próprio órgão pericial reconhece que o tratamento adequado só existe em centros maiores, manter o servidor em localidade desprovida desses recursos representa violação do direito fundamental à saúde.

A decisão baseou-se no laudo do médico assistente do servidor, que confirmava a necessidade de tratamento contínuo em Santa Maria, prevalecendo sobre a perícia oficial contraditória. O caso estabelece precedente importante ao demonstrar que a existência de atendimento médico genérico na cidade de origem não impede a remoção quando comprovada a superioridade técnica do tratamento disponível em outra localidade.

Outro precedente relevante provém do Tribunal Regional Federal da 1ª Região, no caso de servidora do Instituto Federal do Piauí, mãe de criança diagnosticada com Transtorno do Espectro Autista (TEA). A servidora, lotada em Uruçuí/PI, pleiteou remoção para Teresina/PI para garantir acesso ao tratamento multidisciplinar necessário ao desenvolvimento adequado do filho.

No acórdão proferido em 26/06/2024 nos autos da Apelação 0003086-17.2015.4.01.4000, o TRF-1 manteve decisão de primeira instância que deferiu a remoção. A fundamentação baseou-se na comprovação, através de perícia médica oficial, tanto do diagnóstico de autismo quanto da necessidade de acompanhamento multidisciplinar intensivo e especializado.

O relator destacou parecer técnico da assistência social do próprio campus de origem, que recomendava expressamente a mudança para que a criança tivesse acesso aos recursos terapêuticos indispensáveis ao seu desenvolvimento. A decisão enfatizou que havia “indisponibilidade de tratamento adequado” na localidade original, tornando evidente a necessidade de remoção para prevenir “agravamento irreversível da saúde do dependente”.

Este precedente estabelece critério importante para casos envolvendo crianças com necessidades especiais: a urgência temporal do tratamento. O desenvolvimento infantil possui janelas críticas que, uma vez perdidas, podem comprometer irreversivelmente o prognóstico. Esta consideração temporal adiciona dimensão de urgência aos pedidos de remoção envolvendo dependentes menores.

A Justiça Federal de Sergipe, em decisão proferida em 02/05/2024 nos autos do processo 0804977-31.2023.4.05.8500, também deferiu remoção de servidora da Universidade Federal de Sergipe cujo filho necessitava de tratamento especializado para autismo. A decisão reforçou que o direito à remoção não se limita à absoluta inexistência de médicos na origem, mas abrange situações onde o tratamento local é reconhecidamente inadequado às necessidades específicas do paciente.

Um precedente mais antigo, mas ilustrativo da evolução jurisprudencial, provém do TRF-1 em decisão de 11/07/2020 no processo 0001060-20.2007.4.01.3000. Neste caso, aplicou-se ainda critério restritivo que exigia “prova de inexistência de profissional especializado na localidade” para concessão da remoção. A comparação deste precedente com as decisões mais recentes demonstra claramente a evolução do entendimento jurisprudencial.

Estes precedentes consolidam entendimento de que a avaliação não se prende à existência formal de qualquer tratamento na origem, mas à adequação, especialização e efetividade dos recursos disponíveis. Cidades que concentram centros de referência nacional em determinadas especialidades podem justificar remoção mesmo quando a localidade de origem possui atendimento médico básico.

Aspectos Probatórios e Documentais

Tratamento médico adequado: pilha de papéis empilhados representando avaliação.

A comprovação da necessidade de remoção por motivo de saúde exige documentação técnica específica que demonstre tanto a condição médica quanto a inadequação dos recursos disponíveis na localidade de origem. A análise dos precedentes jurisprudenciais revela elementos probatórios essenciais que têm sido determinantes para o sucesso dos pedidos.

Laudos médicos detalhados constituem elemento probatório central, devendo especificar não apenas o diagnóstico, mas também os tratamentos necessários e sua especificidade técnica. No caso do servidor do IF Farroupilha, o laudo do médico assistente foi determinante ao confirmar que o tratamento para a condição degenerativa da coluna exigia recursos especializados disponíveis apenas em hospital universitário. O documento deve explicitar por que o tratamento requerido difere do atendimento médico convencional.

A comparação técnica entre os recursos disponíveis na localidade de origem e na cidade de destino representa elemento probatório fundamental. Esta comparação deve ser objetiva e documentada, demonstrando a existência de centros de referência, equipamentos especializados ou equipes multidisciplinares na cidade pretendida que não estão disponíveis na localidade atual.

No precedente envolvendo criança autista do IFPI, ficou documentada a ausência de equipe multidisciplinar especializada em TEA no interior do Piauí, contrastando com a estrutura disponível na capital. Esta demonstração comparativa deve incluir informações sobre: especialização dos profissionais, disponibilidade de terapias específicas, existência de protocolos de tratamento adequados e estrutura hospitalar apropriada.

Relatórios de assistência social ou pareceres técnicos institucionais podem fortalecer significativamente os pedidos. No caso do IFPI, o parecer da própria assistência social do campus recomendando a mudança foi elemento decisivo na fundamentação da decisão judicial. Estes documentos demonstram que a própria instituição reconhece a inadequação dos recursos locais.

A documentação sobre urgência temporal e prognóstico constitui aspecto particularmente importante em casos envolvendo crianças. O conceito de “agravamento irreversível” utilizado pelo TRF-1 no caso do TEA baseia-se em evidências científicas sobre janelas críticas do desenvolvimento infantil. Laudos que especifiquem estas janelas temporais e os riscos da demora no tratamento adequado fortalecem substancialmente os pedidos.

Comprovação de tratamentos anteriores ou tentativas de acompanhamento na localidade de origem também pode ser relevante. Documentos que demonstrem deterioração da condição devido à inadequação do tratamento local ou impossibilidade de continuidade terapêutica adequada reforçam a necessidade de remoção.

A jurisprudência indica que a robustez e consistência da documentação médica são fatores determinantes. Laudos genéricos ou conclusões contraditórias, como no caso da perícia oficial do IF Farroupilha que simultaneamente afirmava a possibilidade de tratamento local e sua disponibilidade apenas em centros maiores, podem ser prejudiciais aos pedidos.

Limitações e Requisitos Administrativos

A concessão de remoção por motivo de saúde deve observar o equilíbrio entre os direitos fundamentais dos servidores e as necessidades organizacionais dos órgãos públicos. Contudo, a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça tem consolidado entendimento de que a remoção por motivo de saúde não se condiciona à disponibilidade prévia de vagas na localidade de destino, reconhecendo a prevalência do direito fundamental à saúde sobre conveniências administrativas.

A compatibilidade entre o cargo do servidor e as funções disponíveis na localidade de destino representa aspecto que deve ser considerado na implementação da remoção. Servidores de carreiras muito especializadas podem encontrar necessidade de adaptações organizacionais que viabilizem sua lotação em órgãos ou unidades da localidade pretendida, devendo a administração buscar soluções que conciliem a necessidade de tratamento com o adequado aproveitamento das competências funcionais.

O interesse da administração na manutenção do servidor em determinada localidade pode ser considerado na avaliação dos pedidos, mas deve ser ponderado com os direitos fundamentais em jogo. A jurisprudência tem estabelecido que conveniências administrativas não podem prevalecer quando em conflito com necessidades médicas comprovadamente graves que põem em risco a vida, a saúde ou a dignidade do servidor ou de seus dependentes.

A temporariedade ou permanência da necessidade médica influencia a modalidade de remoção a ser concedida. Tratamentos com duração determinada podem ensejar remoção temporária, com retorno programado após a conclusão do tratamento, enquanto condições crônicas que exigem acompanhamento continuado frequentemente justificam remoção definitiva. Esta avaliação deve basear-se em prognóstico médico fundamentado sobre a evolução esperada da condição de saúde.

Aspectos Procedimentais e Recursais

O procedimento para solicitação de remoção por motivo de saúde deve observar formalidades específicas estabelecidas pelos órgãos públicos, incluindo prazos para apresentação de documentação e manifestação das chefias envolvidas. A instrução adequada do processo administrativo é essencial para evitar indeferimentos por questões meramente formais.

A negativa do pedido administrativo não encerra as possibilidades de obtenção da remoção, podendo o servidor recorrer ao Poder Judiciário através de ação ordinária. A via judicial tem se mostrado receptiva aos pedidos fundamentados em documentação médica consistente e na jurisprudência favorável.

A urgência médica pode justificar a concessão de liminar judicial determinando a remoção imediata, especialmente em casos em que a demora pode agravar a condição de saúde do servidor ou dependente. A demonstração da urgência deve ser feita através de documentação médica específica que ateste os riscos da permanência na localidade atual.

O acompanhamento processual adequado é essencial para o sucesso dos pedidos, seja na via administrativa ou judicial. A complementação tempestiva de documentação solicitada e a apresentação de argumentos jurídicos consistentes podem ser determinantes para o resultado final.

Considerações Finais

Tratamento médico adequado: martelo de madeira e estetoscópio no fundo.

A evolução jurisprudencial dos critérios para concessão de remoção por motivo de saúde representa avanço significativo na proteção dos direitos fundamentais dos servidores públicos e de suas famílias. A superação de entendimentos restritivos em favor de critérios que consideram a adequação e qualidade do tratamento médico reflete maior compreensão da complexidade do direito à saúde.

Para os servidores, esta evolução representa ampliação das possibilidades de obtenção da remoção em casos em que há necessidade médica legítima, mesmo quando existem recursos básicos de saúde na localidade de origem. A chave para o sucesso dos pedidos reside na adequada fundamentação técnica e na demonstração objetiva da superioridade dos recursos disponíveis na cidade de destino.

Para a administração pública, os novos critérios exigem avaliação mais cuidadosa dos pedidos, considerando não apenas aspectos formais, mas também a substância do direito à saúde. Esta abordagem mais sofisticada contribui para decisões mais justas e alinhadas com os princípios constitucionais.

A tendência jurisprudencial indica consolidação progressiva destes critérios mais abrangentes, sugerindo que futuros pedidos de remoção por motivo de saúde serão avaliados com base na adequação substantiva do tratamento disponível, e não apenas em sua existência formal. Esta evolução fortalece a proteção dos direitos fundamentais e contribui para administração pública mais humanizada e sensível às necessidades de seus servidores.

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